quinta-feira, 11 de setembro de 2008

Ladrão de coração

Esses dias eu fui roubado. Não levaram nada de valor. Uma agenda velha, anotações sem muita importância, telefones de velhos conhecidos, pessoas que nunca vão ligar mesmo, datas passadas. Levaram algumas lembranças, presentes de despedida. Melhor assim, não gosto de despedidas.
Com o passar do tempo começo a perceber o que realmente perdi. As novas cópias de chaves de casa já não possuem o chaveiro de coração que recebi, de forma meio insegura, das mãos daquele amor. Nunca fui apegado a bens materiais e é gozado sentir falta disso em meio a tanta coisa que se foi. Paro de lamentar e aceito viver sem isso... Mesmo assim, não paro de lembrar a cena, as mãos, o chaveiro, o sorriso. Acabou.
Puxo pela memória, tento mentalizar uma lista do prejuízo. Os livros? Isso é até fácil, já comprei novos, mas, e as dedicatórias açucaradas? Eram tematizadas pelas datas presenteadas ou de acordo com o titulo da publicação.
Lembrei-me agora de um selo colado na agenda, um selo de carta, acho que era de quarenta centavos. Tinha um desenho de uma negrinha de olhos lânguidos, uma negrinha linda. Lembro exatamente da cena. Em meio a bagunça na mochila ela fuçava o conteúdo e puxou a fileira de selo, três ou quatro e começou a observá-los, sem vacilar disse “vou pegar pra mim”, logo depois colou um selo na agenda. Reclamei, alegava que ainda tinha cartas a serem enviadas. Ela perguntou se eu ia ter coragem de colar aquele lindo desenho em uma carta. Na ocasião não tinha entendido, acho que só meses depois é que fui compreender o que dizia. Abri a agenda velha e dei de cara com a linda negrinha me olhando. Lembrei então da cena e do dialogo, lembrei daquela noite, da música, das longas conversas, foi uma boa lembrança. Levaram a negrinha...
(o texto tem dois finais)


1.
Levaram a negrinha... È talvez os registros materiais de boas horas não sejam duráveis, mas quero acreditar que ainda possa me nutrir do que ainda resta.
Quem pode cotar o valor de uma boa lembrança? Quero guardar todas as boas lembranças, apenas elas. Esses dias fui roubado, mas não levaram nada de valor. Tenho medo de no futuro, por desleixo ou falta de atenção, deixar perder-se no tempo um bom momento vivido. Podem vir seus covardes, podem levar tudo que não tenho, mas não levarão meus únicos bens. Minhas lembranças.

2.
Levaram a negrinha... Tento agora lembrar o que sentia por aquela pessoa, o motivo pelo qual a lembrança do selo era tão especial. Penso, penso, mas não encontro a resposta. Penso mais um pouco e acabo percebendo que acabei idealizando alguns momentos, ou talvez tenha confundido com qualquer outra ocasião. Tento lembrar do sorrio, do brilho nos olhos, mas tudo é nebuloso. Tremo. Tal foi o choque da constatação: MALDITOS COVARDES! LEVARAM ATÉ MINHAS LEMBRANÇAS...



imagem: cena do Impire Inland

Um comentário:

Aiu Bio disse...

Lindo conto! Adoreiiiii...
Parabéns miga!!!!
Bjosssss