Houve um acidente. Uma família inteira ficou soterrada por causa do desabamento de algumas casas que deslizaram incrivelmente ladeira a baixo, interrompendo o trânsito, fechando a marginal.
Há três dias, ninguém passa, quer dizer, nenhum carro passa. Os bombeiros numa labuta impressionante não arredam o pé do local: guindastes, tratores, pás e braços tentam como podem remover os escombros. É possível ouvir vozes, alguém se comunica, na verdade suplica pedindo ajuda.
----- Socorro! Meu filho, meu filho – Bradava alguém embaixo da terra.
Aquela rodovia é a única a dar acesso pra quem sai ou entra na cidade de Dante. A fila de caminhões é entrecortada pelos curiosos à pé que, atônitos, ouvem os gritos de desespero dos soterrados. Cidade do interior é assim mesmo, qualquer coisa que interrompa a calmaria e quebre a rotina, atrai todo mundo. Tem gente até vendendo pipoca, capa de chuva, guarda-chuva...
A principal atividade financeira de Dante é a venda de peixes, que inclusive estão esgotando-se devido a pesca industrial. Por muito tempo os habitantes viveram de maneira sustentável, sem causar grandes danos à natureza, viviam da pesca, comercializavam entre si. Todavia, o Cará, principal pescado daquela região estava praticamente extinto das águas brasileiras, o que fez muita gente voltar seus olhos gananciosos para a cidadezinha. A lei do mercado nunca se fez tão presente, a 'oferta e a procura' gritavam alto nos ouvidos daquela gente pobre: o peixe, em falta, ou seja, caríssimo, já não podia ser consumido por muitos que nasceram ali e praticamente morrerão ali também, assim como seus pais e avós, que a vida toda tiveram fartura de peixes, graças ao rio Amálgama que, surpreendentemente, permaneceu por muito tempo, limpo.
----- Me tirem daqui... minha casa, o que vai ser de mim?! - Resmungava alguém, já sem forças no meio da terra, da lama e do cimento fundidos como uma grande massa de bolo, cujo recheio era um casal e três filhos.
No 'Globo Repórter' o enfoque da reportagem era os benefícios que o bicho das águas trazia para os seres humanos, Omega três e tal. Empresas passaram a produzir camisetas escritas: 'eu, amo Cará'. Carros desfilavam com adesivos com desenhos de coração com cara de peixe, em alusão ao ilustríssimo animal. Aos poucos surgiu uma indústria com os derivados de produtos relacionados ao Cará. Se continuar assim, daqui a pouco tem 'neguinho' vendendo escama como medicamento.
O Cará transformara-se em ouro. Quem degustava era apenas gente da elite que, outrora, saciava sua necessidade de ter status, com caviar. Por conta disso, a mídia passou a devotar tamanha importância ao prato ao ponto de o 'Jornal Nacional' fazer uma série de reportagens com duração de uma semana sobre a extinção do peixe com uma mensagem ambígua dizendo tanto pra preservar como para consumir cada vez mais. Na novela das oito, o personagem mais pobre reunia a família dizendo: “oi filhinha, adivinha o que o papai trouxe hoje...”, “o que papai?”, “Cará”... “Êbá”. A rica empresária aceitava o convite do galã que a convidava para um jantar. Na mesa do restaurante chique, a latinha dourada do 'Cara 'lho', sucesso nacional, peixe na conserva de alho.----- “Equipes de bombeiros de várias cidades se movem em solidariedade à população dantesca...” - conta a repórter loira da televisão local. No 'SP TV', o âncora noticia – pela décima vez – o infortúnio dos heróis: ----- “Dante, a cidade do Cará, como ficou conhecida, ainda está isolada devido ao deslizamento que deixou cinqüenta e nove feridos e três mortos. Uma família ainda está embaixo dos escombros”...
Nunca em seus 335 anos de história Dante fora tão presente nos noticiários: ----- “o Brasil se comove com o drama dos dantescos”... “A defesa civil declarou estado de calamidade pública”...
“Autoridades se reúnem para discutir o problema de Dante”... “O comércio soma prejuízos de 30% em relação ao mesmo período do ano passado”... “Duas toneladas de Cará são perdidas em caminhões parados na estrada interrompida”... Essas eram matérias dos jornais impressos que, como pautas escolhiam aquilo que a televisão cobria.
Em reunião extraordinária entre o prefeito de Dante, o governador do estado e os principais empresários da 'pesque-cultura' houve um consenso: estamos perdendo dinheiro! O pensamento deles era simples: os tratores têm que remover os escombros logo, ainda que passem por cima das pessoas que estão soterradas. Para isso, chamaram um importante político e empresário do ramo de comunicação.
----- É o seguinte, aquela estrada já era pra ter sido desobstruída, estamos perdendo muito dinheiro, os empresários estão indo à falência... - disse o prefeito.
----- Sim, e o que eu tenho a ver com isso? - respondeu o político.
----- Joãozinho, não se faça de tolo, isso eu sei que você não é – estudamos juntos, lembro de como você era esperto - intrometeu-se o presidente da Cará & O.Brasil.
----- Juro que não entendi – ironizou o rei da comunicação.
----- Vou ter que desenhar? - interrompeu o governador.
Sem paciência, e suando frio por estar sendo assassinado com olhos pelos empresários, o prefeito explicou:
----- Quero que use seu jornal, seu canal de T.V., e suas estações de rádio para fazer uma campanha que justifique a remoção dos escombros pelos tratores...
----- Você está insinuando que vai passar por cima daquela família – disse isso com uma voz de choro que dava pena – aquela família que o Brasil todo acompanha pela televisão? Vocês estão malucos!
----- Calma, vamos negociar - disse o governador com fúria.
Concomitantemente, os bombeiros trabalhavam delicadamente, retirando com a ajuda dos moradores as pedras, com as mãos. A pessoa que pedia ajuda, agora só resmungava emitindo grunhidos de dor, falando quase que imperceptivelmente os nomes de seus filhos. Mesmo com a ajuda de uma multidão comovida com o caso, mesmo com a retirada do pai e de uma das filhas, já sem vida, o resgate ainda iria demorar ao menos dois dias, pois a chuva não cessava e os deslizamentos continuavam.
Nunca houvera uma catástrofe de tamanha dimensão em Dante. Alguns populares atribuam o desabamento às obras feitas no topo do morro, trazendo o progresso para a cidadezinha.
Sorvendo um wisk caríssimo, o governador propõe: ----- Te dou a concessão do canal de T.V por mais 30 anos. Faço todo mundo aprovar.
----- E eu perdôo a dívida que tem com nosso município – completou o prefeito.
Algumas horas depois a estrada estava livre. Nas estações rádio local e de maior abrangência, bem como em rede nacional televisiva, o prefeito e o governador revezavam para dar um pronunciamento oficial acerca do Ocorrido em Dante:
“É com muita dor no coração que vimos em rede nacional dividir com o povo brasileiro a angústia diante da tragédia de Dante... A cidade está de luto oficial por três dias... As autoridades fizeram o que puderam... Os bombeiros estão de parabéns...”
O funeral dos dois corpos resgatados inteiros – os outros foram triturados pela ação dos tratores – foi acompanhado por uma multidão imensa, que rezava o pai nosso e cantava louvores a Ele, o protetor dos pobres e miseráveis.
Alguns dias depois as pessoas se revezavam nos comentários sobre a tragédia. Ontem o que nutriu suas opiniões foi um “debate” entre um especialista em remoção de escombros, um “bomberói” - como ficou conhecido um bombeiro que participou da operação do início ao fim, (sendo o primeiro a chegar e o último a sair), um economista e um parente da mãe que gritava pedindo ajuda. O economista detalhava taxas de juros, números e estatísticas que ninguém entendia dizendo que as pessoas no geral perderam menos com a morte daquela família, uma vez que se a rodovia não fosse desobstruída, mais gente sofreria, pois o tanto de mercadorias que transita por aquela estrada é convertida em impostos para o município e na construção de novas casas. Sem contar nos turistas que deixaram de visitar Dante nesses dias, no trabalho que foi interrompido, naquelas pessoas que – infelizmente, sobrevivem dos restos do Cará que não chegava aos mercados.
Tecnicamente o especialista em escombros elogiava a ação das autoridades atestando que não houve equívocos na atuação dos responsáveis pela operação. O bombeiro, emocionado, comovia a todos dando relato de seu esforço e de como era difícil ouvir aquela voz. Dizia ainda para as pessoas não construírem casas no alto dos morros “é muito perigoso”. O parente, coitado, não tinha espaço para falar e não se sentia a vontade no meio das câmeras.
Por: Wagner Pereira de Almeida (Covero)
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