quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

Em busca do carnaval perdido no berço do samba Paulista


Sábado de carnaval. No terminal rodoviário da Barra Funda, São Paulo, entre as diversas paradas de ônibus a que destina à cidade de Pirapora do Bom Jesus é quase desconhecida. Com cerca de 15 mil habitantes, próxima às cidades de Santana do Parnaíba e Barueri, a cidade a principio não inspira muita curiosidade. Ninguém sabe explicar com segurança onde fica e como chegar até lá, muitos dizem nunca ter ouvido falar de tal cidade. No balcão de informações do Terminal de ônibus as informações são desencontradas e confusas. Pela falta de conhecimento da maior parte das pessoas não dá nem para acreditar que Pirapora fica a apenas 50 quilômetros de São Paulo.

São cerca de duas horas até chegar ao destino. No pequeno município vazio, perguntas para um e outro para saber: “Onde podemos ver samba de bumbo?”, indaga um grupo de foliões vindos de outras cidades em visita a Pirapora. A expressão de desconhecimento dos moradores do pacato lugar dá certa insegurança ao grupo.

Pirapora do Bom Jesus é uma típica cidade do interior, com fachadas antigas, praças com coreto, ruas limpas e canto de pássaros. O grupo de turistas perdidos decide recorrer aos mais velhos na busca de informações mais confiáveis. E dá certo. Segundo a simpática e anônima vendedora de pipoca, um bloco de samba sairia daquele mesmo lugar às dez horas da noite. É nessa rua de paralelepípedos que se encontra uma grande casa antiga, construída por volta de 1913, que hoje abriga o Espaço Samba Paulista Vivo, um centro de tradições que procura preservar essa relíquia que trouxe e traz caravanas vindas da grande São Paulo para Pirapora.

A cidade é considerada o berço do samba paulista: foi nela que no início do século, em seu auge, se reuniram grupos de batuqueiros de diversas regiões de São Paulo, sul de Minas Gerais e Paraná. Paralelamente às romarias que celebravam as festas de Bom Jesus, era nos barracões onde dormiam as famílias de romeiros negros que fazia-se o samba de bumbo, ou samba de cabineiro, o samba de Pirapora. Diferente do samba que conhecemos hoje vindo dos sambódromos, a música praticada por esses negros pobres tinha como instrumento de solo o bumbo, eram os instrumentos de som mais graves que davam o formato a música, enquanto os agudos faziam o acompanhamento, uma característica da música africana praticada até hoje.

Pirapora como ponto de encontro dos grupos negros conseguiu preservar e disseminar as mais fortes raízes da música africana. Dessas festas em que se reuniam diversos grupos de batuque participavam também os fundadores dos cordões de samba de São Paulo, como Dionísio Barbosa do Grupo da Barra Funda, primeiro a introduzir no carnaval de rua paulistano o bumbo. O samba de Pirapora era também muito bem freqüentado por mestres do samba paulista como Geraldo Filme que declara sua paixão pelo ritmo em versos como: “Eu era menino mamãe disse vamo embora, cê vai ser batizado no samba de Pirapora”.

A ansiedade é grande, já chega perto das dez horas no centro de Pirapora que então já se encontra cheio de gente. A atração mais disputada da noite é o desfile da Rainha Gay. Isso mesmo, em Pirapora os garotões que durante todo o ano exibem sua masculinidade pelas ruas, vestem-se de mulher no carnaval, um costume muito tradicional e respeitado. É possível observar pela cidade vários grupos de 5 ou 6 travestidos que disputam espaço sobre capôs de carros velhos e pintados com cores berrantes. Mas os eventos que atraem multidão são os ritmos populares, para não dizer pop´s, com bondes, créus e cachorras. É possível acompanhar ainda um belíssimo baile de carnaval que vira a madrugada ao som de marchinhas que garantem muita diversão.

Na praça central já é possível observar um grupo de batuqueiros se preparando, vestem preto e vermelho levando um estandarte e uma caveira de vaca carregada sobre um pedaço de pau. Forma-se uma roda, na qual está no centro o mais velho do grupo com seu bumbo, que organiza o pequeno bloco e parece ensinar os mais jovens como se brinca o samba de Pirapora. O grupo atravessa a praça central e é aplaudido por todos, caminha pelas ruas estreitas sem, contudo, ser acompanhado por todos. Apenas um pequeno grupo de pessoas segue o grupo, já transpiram brincando o carnaval embalados por um som que parece bater na alma. Repetem versos feitos por improviso até chegar a porta de um bar onde o bloco pára e começa a cantar um verso endereçado ao dono do estabelecimento. A canção pede um “litro” e é prontamente atendida com a entrega de uma garrafa de cachaça. O litro corre o bloco de mão em mão como uma espécie de ritual e a canção é em agradecimento ao generoso dono do “boteco”. O grupo de batuqueiros continua caminhando pelas ruas e repete a brincadeira nos bares que encontra pela frente. Nessas andanças pode-se reconhecer no meio dos foliões Dona Esther. Muito conhecida, posa para fotos com os foliões. Aos 84 anos é de admirar-se encontra-la no meio da agitação, não demora muito e ela toma a frente do bloco.

Maria Esther Camargo Lara nasceu no samba de Pirapora e é uma lenda viva da cultura brasileira. Foi inspirado em seus versos de improviso que muitos sambistas compuseram suas canções. A guardiã do samba rural paulista, líder do grupo Samba de Roda, faz as vezes de guia cultural recomendando outros blocos de samba como o grupo de Barretos que se apresentaria em seguida. “Os rapazes são tão bonitos que não dá vontade nem de casar, só de deitar” declara a octogenária do samba que parecer ter a vitalidade de adolescente. “Não importa a idade, o que importa é o rebolado” costuma afirmar Dona Esther.

O samba de bumbo de Pirapora do Bom Jesus inspirou, inspira e continuará inspirando a todas as gerações que gostam de boa musica brasileira. Um ritmo que se manteve vivo por mais de um século e pode ser considerado a raiz mais pura da cultura paulista. Representa realmente o berço do samba que encontra ecos eternos fora dos territórios piraporanos. Está no coração do sambista e folião.


Antropologia do Samba

“ Já por quatro vezes tive ocasião de ver o samba rural paulista, embora não tenha feito estudo perfeitamente sistemático sobre ele, me creio em condição de dar uma descrição dele. Reúne-se um grupo de indivíduos, na maioria negros e seus descendentes para dançarem o samba. O grupo tem seus instrumentos de percussão em que o bumbo domina visivelmente. Enfileirados os instrumentistas, com o bumbo ao centro, todos se aglomeram em torno deste, no geral inclinados pra frente como que escutando uma consulta feita em segredo. É pois a coletividade que decide do texto-melodia com que vai sambar. No grupo em consulta, um solista propõe um texto-melodia. Não há rito especial nesta proposta. O solista canta, canta no geral bastante incerto, improvisando. O seu canto, na infinita maioria das vezes, é uma quadra ou um dístico. O coro responde. O solista canta de novo. O coro torna a responder. E assim, aos poucos, desta dialogação, vai se fixando um texto-melodia qualquer. O bumbo está bem atento. Quando percebe que a coisa pegou e o grupo, memorizando com facilidade o que lhe propôs o solista, responde unânime e com entusiasmo, dá uma batida forte e entra no ritmo em que estão cantando. Imediatamente à batida mandona do bumbo, os outros instrumentos começam tocando também, e a dança principia.”
Mário de Andrade, 1937

Um comentário:

Anônimo disse...

maravilhoso!muito boa a matéria.