sábado, 16 de junho de 2007

Asas amarelas

A duas quadras, à esquerda, o muro. Tenho pensado em como contar isso, sem deixar vestígios, mas talvez impressões com pouca tinta. Passo a passo. Os olhos fecham e abrem, num movimento leve de danças psicóticas desestruturadas. O medo convence. São só duas quadras, à esquerda, perto do muro. As pernas não obedecem. Não lembro de ter bebido, não bebo mais. Não lembro de nada mais. O chão puxa. A chuva molha o concreto. Eu não sinto mais. Eu sinto apenas o cheiro de pneu, de asfalto molhado. A chuva molha minha alma. As pernas continuam a mandar em mim. Não bebi. Os olhos fecham mais que abrem. O chão puxa mais forte. Ainda não vejo o muro. Tenho pensado em como contar isso. Já não há nem mesmo pouca tinta para impressões. Vestígios não têm a mesma importância que antes. O mês de abril já passou. Não sei para que lado é à esquerda. Não sei quantas quadras já andei, cambaleando. Não encontrei palavras para explicar o que talvez não quero que saiba. Acho que não quero contar isso. Mas é preciso. Eu vou. As pernas perdem a força que já não tinham. Nada mais comanda o corpo. Sinto o nariz escorrer, mas não sei se estou chorando. A chuva me confunde. Oras doce, oras ácida. Lava a minha cara. Passo a passo. O cheiro muda os sentidos. O olfato não funciona. Os olhos deixam de abrir, lacram. Eu não bebi. Teria que contar isso. Impossível ver o muro. Não sei que rua é essa. Não sei quantas quadras são duas quadras. As pernas param. Só tremem. O chão puxa meus joelhos. Eles obedecem. O concreto rasga meu jeans sujo. O medo se ri de mim. Puxa meus cabelos. Enfraquece os motivos. Enfraqueço. Nunca vou contar aquilo. A boca seca. A chuva cessa. Os joelhos padecem. Nunca vi o muro. Tremo. Queria ver. A escuridão me tomou do mundo. Não bebia há muito. Sei que não bebi. Só precisava contar aquilo. Perdi as pernas. O olfato. Os sentidos. Perdi os olhos. A boca agora sossega contra o concreto, num beijo áspero. Queria ver. Queria ver o sol. Queria ver alguma luz. Não quero parar de tremer. O tremor indica que ainda vivo. Não sei se respiro. Esqueci. Não sei se já morri. E aquilo? Morre comigo. Ainda ouço. Somente ruídos. Um grito. É dele. Que nunca vai saber daquilo. Não vejo. Sinto que é ele. Ou imagino. Ouço perguntas. Eu não sei. Eu não sei as respostas. Só queria ver o sol. Queria ver a luz do sol tocar as asas amarelas de alguma borboleta. Um beijo na testa. Um beijo nos olhos. Agora sei. É ele. Não vejo. Não me pergunta mais nada. Paro de tremer. Mas sei que ainda vivo. Sinto o calor de um corpo que não é meu. Eu sei que dele. Ele nunca vai saber aquilo. Respiro. Não consigo falar. Adormeço. Sonho... Vejo o sol no meu sonho. Vejo a luz entrar pela janela, de manhã. Vejo minha borboleta amarela. Eu vejo. Eu sinto minhas pernas fortes. Eu danço. Eu sinto o cheiro da vida. Eu sinto o cheiro da terra. Eu não preciso procurar nenhum muro. Não há quadras. Não há esquerdas, nem direitas. Há um fogão à lenha. Um beijo doce. No meu sonho. Eu vejo. Eu ouço. Eu sinto. Eu falo. Eu faço perguntas. Não quero respostas. Sei que a vida é o próprio sentido. Vivo. Fico com ele ao entardecer. No meu sonho, não uso jeans. Não trabalho. Não penso. Beijo os olhos dele. E ele sabe que sou eu. Acordo... Acordo desse sonho bom. Procuro a mão dele. Abro os olhos. Não estão mais lacrados. Não estou suja. A chuva não existiu. Eu vejo. Vejo o sol da manhã entrar pela janela do quarto. Ele está do meu lado. Eu lembro que sonhei. Eu precisava contar algo. Eu lembro que procurava um muro. Eu lembro que não queria contar a ele. Eu lembro que eu precisava. Eu lembro. Passei o muro. Ele acordou. Sorriu. Contei a ele. Contei a ele pela retina. Ele sempre soube. Eu não sabia. Ele também me contou. Vejo a retina dele emanar amor para a minha. Contou o amor. Contou o que eu precisava contar a ele. Com a retina. Contei o amor. Contei o que num sonho quase me matou, pela retina.

7 comentários:

Glauco disse...

olhos psicóticos, a boca seca na chuva, passo a passo, mão lacradas e o sonho.

intensidade.

Anônimo disse...

Li, conversamos segunda...

Anônimo disse...

Nossa que legal...
mal começou já tem texto
e comentários...

:)

muito bom galleli

besos

Santa Sofía de La Piedad disse...

Essa menina é um k7 mesmo, seria um realismo fantástico?...Não dorme nao, o Paterícia?

Anônimo disse...

É como lhe disse... te admiro...

Anônimo disse...

ah, mas bebeu. bebeu sim senhora!

N.C. disse...

Quase morri de agonia lendo isso!
... Mas felizmente vc contou :)