É possível a memória
ser hereditária? Sobreviver a gerações passada por DNA? Foi isso
que me indaguei ao ouvir ela contar.
Nasceu no nordeste seco
e o primeiro casamento de sua mãe não deu certo, mal teve pai.
Quando nasceu sua mãe já não vivia com ele. O próprio nascimento
foi problemático, foi muita complicação e ela demorou muita para
conseguir respirar, dar aquele choro rasgante de bebê.
Quem fez o parto foi a
avó. Experiente parteira da região, ajudou a colocar muita gente no
mundo. Em cada nascimento recebia o título de “mãe de umbigo”.
Era filho que não acabava mais.
Essa mãe de umbigo
passou a ser a primeira mãe. Foi ela quem a criou depois que a mãe
biológica arrumou outro casamento. Essa vó-mãezona era muito amada
e divertida. As duas pareciam crianças uma cuidando da outra. Para
buscar água iam cada uma no lombo de um burro por léguas de
distância, como se dizia por lá. e a mais velha xingava porque a
pequena gostava de ir na frente e trotando o animal a certa
velocidade.
- Não é pra
correr!
- Por que?
- Porque o burro é
meu.
- Mas eu quem estou
montando.
- Oxe...
E assim iam discutindo
todo o caminho. O detalhe é que a pequena tinha apenas 2 anos e a
avó 50.
Imagina a cabeça da
criança quando tempos depois a mãe biológica vai busca-la para
vive com a nova família. A mãe também sempre foi amorosa, mas
naquele tempo não se conversava direito com as crianças, nunca
explicaram para ela porque não via mais a “mãe bia”, querendo
dizer “mãe maria”, nem porque a “mãe ota”, talvez querendo
dizer “mãe outra”, não a levava mais para a roça e tinha que
passar o dia todo trancada dentro de casa olhando o quintal por uma
fresta do vidro quebrado da janela. Ela ficava ali, o dia inteiro com
medo, sem se mover até a mãe voltar. Ela ficava trancada em casa
porque uma dia na roça, bem embaixo do tronco onde ela ficava
sentada olhando a mãe trabalhar na enxada havia uma cobra venenosa.
A mãe, para evitar o risco à criança decidiu mante-la em casa, mas
nunca explicou isso para a menina.
Ela ficou muito anos
sem ver a avó e a dor a fez criar uma espécie de bloqueio metal.
Ela não se lembrava mais da “mãe bia”, o esquecimento talvez
fosse uma forma de se defender da dor da saudade que sentia que avó.
Fiquei ouvindo essa
história que ela me contava e percebi que a solidão, carência e
medo que senti durante toda a vida tinha talvez uma explicação.
Minha mãe acabará de me contar parte de sua infância e não pude
deixar de lembra da minha, tão mais confortável, mas também tão
doída. A vida inteira procurei explicação para a melancolia que
sentia sem motivo e acredito que, se não foi transferido por DNA,
todos esses sentimentos e recordações, foi pelo choro em momento de
angustia, pelo seu olhar deligado em certos momento, por suas canções
tristes para ninar. Sempre me senti profundamente tocado por sua
sensibilidade e por sua alegria mesmo em momentos difíceis.
Sua história explica
um pouco da minha.
Um comentário:
Que texto extraordinário.
Me emocionei.
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