terça-feira, 6 de abril de 2010

Ontem

Dia anterior é jeito de não viver feliz os próximos e suas repetições. Vejo Paul Auster toda vez que acordo, no canto do quarto, olhar fotografias da solidão passada. Minha manhã boceja um bom dia custoso e eu quase não me coloco uma roupa decente. Arrumo a cama só porque a mãe pode chegar cedo. Ela não sabe que sou autista e transgrido minhas horas em inutilidades, que ela na verdade tem vergonha, ou que deveria. Só quando a filha da vizinha domina as ondas sonoras do bairro e emana aos meus tímpanos a dose matinal de sua falta de surra é que me curo do autismo. Meus ouvidos bebem, meus nervos padecem, a doença some - chegam o colapso e a demência.

Ontem levei minha avó medir os ossos. Seria um passeio, para não dizer um plano desonesto de me tirarem de casa e me fazerem útil. A utilidade às vezes me soa maneira delicada de acreditar que ainda falta um monte para morrer. Antes de voltar, ela queria remédios para os rins, para os nervos, para o estômago, o fígado, para o sangue, as células, para o reumatismo, diabetes e queria salada. Deixou a aposentadoria na farmácia e voltou sem a alface.

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