Se a verdade fica mais bonita nua, desço às amarras dos meus cadarços e desato essas vertigens mascaradas. (Quanta libertação!).
O colorido das minhas tintas não passa de disfarces castrados de uma esperança passageira. Devo confessar: Serei a última a morrer. Tudo antes de mim, se não morre, acabo matando. Os neurônios, as células, as vontades, as idéias e, até mesmo, os cogumelos chineses milagrosos e fedorentos, que curam de câncer de pele a hemorróidas. Morrem. Por si, por mim – e, através de mim.
Os enterros, nunca faço. Antes faria o obituário de cada morto num jornaleco qualquer. O perfil seria longo. Um a um, montaria quilômetros. Palavras, letras, erros de gramática, ortografia, acentuação – parcelas incontestes de mortos ainda utilizáveis. Um a um, os perfis seriam escritos com tipos de antigamente. Uma impressão medonha, mas bem diagramada. Cada morto teria ainda a contagem de tempo levado para se fazer o perfil. Seria contado através da proporcionalidade do crescimento de meus cabelos. Quando corto os cabelos na lua crescente, eles crescem! É até inconseqüente a coincidência – ninguém me acredita! Acham que minto, como quando eu falo que para sarar intersol é só passar xixi.
Sempre descrentes, levam minhas demonstrações de afeto como uma espécie de piada mal contada. Afetos que não deveriam ter sido demonstrados. Sofri estupidamente durante vários meses, buscando entender por que o carinho foragido da minha clausura se ferrava toda vez. Os reclusos comandavam meu país de sentimentos. Os libertos se enrolavam na liberdade até tropicarem, caírem e não passarem de vagabundos abandonados.
Procurei uma amiga para falar do assunto. Ela, enfermeira veterana, me deu grande ajuda pelo desabafo que permitiu. Quando expliquei os lapsos desnutridos, que afoitos saltavam a demonstrar a fraqueza afetiva que eu guardava, ela logo prescreveu a solução. “Tu deve importar moscas Tsé-tsé da África”, me disse, compadecida. Tive vontade de esfolar a cara dela. Mas me contive. Exatamente depois de dois dias e quarenta e sete minutos, pensei melhor e resolvi pesquisar sobre as Glossina palpalis. Encontrei um conceito altamente científico no Wikipédia. Só não tive capacidade de entender como as Tsé-tsé poderiam me envolver em algum consolo. A enfermeira falou com tanta convicção, que despertou em mim uma ânsia terrível de encontrar sentido nisso. Enfermeiras não parecem profundas em suas colocações, mas, mesmo assim, comecei a procurar o obscuro, a catar a mensagem subliminar, se é que existia. Cantei minha insistência quase que como um mantra da salvação.
Transmite a “doença do sono”, causada pelo tripanossoma brucei e têm três variedades, todas hematófilas. Vejamos... É encontrada no lago Chade, ao oeste do Senegal e a leste do lago Victória. Vejamos... Autoridades da área de saúde cogitam extermínio. O inseto tem uma cor chamada âmbar, com abdômen listrado. As asas são transparentes. Vejamos...
Nenhum sentido a priori. As demonstrações contorcidas se engataram na falta de sentido das palavras da enfermeira (ainda mais contorcidas e confusas para mim). Doença do sono... Talvez importar uma mosca dessas me faria perder tempo com pesquisas visuais nada analisadoras, muito menos científicas, me mantendo ocupada o bastante para não torrar o saco de ninguém com demonstrações de carinho. Ou ainda, a “dona cruz vermelha” quis dizer que, ao adquirir a doença, eu me livraria desse problema insólito e lindo que é a insônia, e passaria minhas noites descansando no conforto da minha cama, sem causar a ninguém o desafeto de ser amado. De fato, como a doença é fatal, eu não mais causaria mal algum, mesmo que insistisse. Enfermeiras são, realmente, profundas!
É um assunto deprimente. E sem sentido. Mas verdade seja dita, nunca pensei num suicídio assim – tão original. E quem disse que em algum dia pensei em me suicidar? Sei lá o que a enfermeira quis dizer. Numa dessas confundiu a mosca e a “doença do sono”, com a apnéia. Portanto, a mosca não vai me matar. Tratarei de fazer um belo obituário para essa idéia também. Ato as amarras, vertigens mascaradas e me prendo. A esperança, passageira que é, sempre volta. Mesmo que “sempre” seja uma palavra que demore muito, porque não termina. Tudo, antes de mim, tem certeza de que volta. Neurônios, células, vontades, idéias. Até mesmo os Tibicos - os cogumelos chineses milagrosos e fedorentos, que curam de câncer de pele a hemorróidas.
2 comentários:
heheheheheh mas que imaginação
muito bom
Obrigado por Blog intiresny
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