domingo, 20 de abril de 2008

contrações ( a parte )

"__Já lhe contei a história do homem que ensinou o cu a falar?
O abdômen dele mexia-se para cima e para baixo e ele peidava as palavras. Nunca tinha ouvido nada igual. Era um som borbulhante, denso, estagnado, um som que dava pra cheirar. O homem trabalhava numa feira e aquilo começou por ser um novo número de ventriloqüismo. Depois de um tempo o cu começou a falar sozinho, ele entrava no palco sem ter nada preparado e o cu respondia às piadas. Depois desenvolveu uma espécie de dentes ásperos, pareciam ganchos virados pra dentro e começou a comer. No início ele achou piada e fez número com aquilo. Mas o cu comia-lhe as calças e começava a falar na rua, a gritar que queria igualdade de direitos. E também se embebedava e tinha acessos de choro porque ninguém gostava dele, e ele queria ser beijado como as outras bocas. No fim, falava o dia todo, noite e dia, ouvia-se o homem gritar com ele para se calar a quarteirões de distância. E batia-lhe com o punho e enfiava-lhe velas para dentro, mas nada resultava e o cu disse-lhe: “No fim quem vai se calar é você, não eu, porque já não precisamos de ti. Eu posso falar e comer e cagar”. Depois disso, ele começou a acordar com uma gelatina transparente, como cauda de um girino, espalhada pela boca. Ele arrancava aquilo da boca e os pedaços colavam-se às mãos, como uma gelatina de gasolina a arder e alastravam. Então, a boca dele acabou por ser selada por aquilo. E a cabeça teria caído espontaneamente, exceto os olhos, está vendo? Era a única coisa que o cu não conseguia fazer, era ver. Precisava dos olhos. As ligações nervosa estavam bloqueadas e infiltradas e atrofiadas e o cérebro já não conseguia dar ordens. Estava preso dentro do seu crânio. Selado. Durante uns tempos, conseguia ver o sofrimento silencioso e impotente do cérebro, por trás dos olhos. E por fim, o cérebro deve ter morrido porque os olhos se apagaram, e havia tanta vida neles como nos de um caranguejo depois da pesca."

"Mistérios e Paixões" ( David Cronenberg )

*Em oferenda à Fábio Calaza

Um comentário:

Sâmia disse...

meu deus do céu...